Carma

O seguinte conto escrevi em 2006 para "um livro sobre o medo", que acabou não sendo publicado.



Não devo temer.
O medo é o assassino da mente.
O medo é a pequena morte que traz a obliteração total.
Enfrentarei meu medo.
Permitirei que ele passe sobre mim e através de mim.
E quando desaparecer, observarei seu caminho com o olhar interior.
Onde o medo passou não haverá nada.
Só eu restarei.
Frank Herbert (“Bene Gesserit Litany against fear” da série Duna)

I

Dois monges postavam-se frente a frente, com os olhos fechados, na posição de lótus. Ao fundo, uma estátua dourada de Siddhartha Gautama, o Buda. Trajavam túnicas alaranjadas, que destoavam do ambiente cinzento, iluminado por velas opacas. Haviam meditado já por quase um dia inteiro. O mais novo e mais franzino deles parecia começar a fraquejar. Aprendera, após mais de vinte anos de treinamento, segredos que só aquele monastério conhecia – mistérios que, alguns acreditavam, o próprio Buda havia revelado a apenas três de seus discípulos. Mas isso era só uma lenda que se contava para os leigos; uma explicação simples e conveniente. A verdade é que não se sabia quem descobrira os segredos ou quando isso acontecera. O importante é que eles eram os guardiões daquelas memórias e do poder que elas representavam.


O monge franzino percebia que o vazio estava perturbado. Não conseguia evitar o surgimento de memórias. Desde o nascer do sol meditara sobre uma única idéia, guiado pela presença poderosa de seu mestre, mas agora não se sentia mais capaz. As múltiplas vozes que formam o pensamento rebelavam-se, impunham sua dissonância, sob a forma de memórias de tempos recentes e distantes. Uma delas era a face da mãe, de quem se separara muito jovem e que persistia em incomodá-lo em seus sonhos. Era só em sonhos que se lembrava dela, porque as memórias que tinha eram pouco consistentes. Outras idéias e imagens passeavam por sua mente sem que conseguisse impedi-las. Não é possível pensar em não pensar. Ou seja: quando se tenta não pensar em alguma coisa, pensa-se automaticamente nela. A única saída é desviar a mente para outro ponto. Escolheu uma memória e tentou concentrar-se: era a voz severa do mestre criticando o apego a coisas ou pessoas, por meio de litanias ancestrais. — Renuncie à ilusão dos sentidos e reconquiste a si mesmo — dizia ele, dando seu toque particular às velhas doutrinas. Esse subterfúgio, porém, não parecia estar funcionando. Logo perderia a unidade outra vez.
— Então você chegou a seu limite. Está perdendo o foco — falou o monge mais velho, mas havia algo de estranho em sua voz, um timbre diferenciado que não conseguia identificar. Ficou por um instante confuso antes de perceber que não falara realmente, que aquela voz era apenas um pensamento seu, ou não era? — Não abra os olhos! Não importa se estou falando ou não com você pela mente ou pela boca ou se esse som que pensa estar escutando é apenas fruto da sua imaginação. É preciso que recupere o foco, ou o esforço desse dia terá sido desperdiçado. Ouça a minha voz, meu aluno! Que a todo o resto você esteja surdo.

E começou a recitar um texto sagrado budista. O monge não tinha certeza se estava ouvindo mesmo o seu mestre ou se era uma memória que se apossara da sua consciência. Tudo se tornou mais estranho quando o velho começou falar numa língua incompreensível. Pelo menos, a unidade de pensamento fora recomposta. Na verdade, sua concentração nunca fora tão perfeita. Sentia-se completamente desvinculado do mundo ao seu redor. Nem a audição nem o tato enviavam sinais a seu cérebro. Não o incomodavam mais a sede ou os protestos do corpo, cansado de permanecer na mesma posição. Subitamente, a litania cessou.

— Pode abrir os olhos agora.

Grande foi a surpresa do monge mais jovem ao perceber que tudo desaparecera, à exceção do mestre. Os dois flutuavam na escuridão infinita. Sentiu um súbito terror e tentou escapar daquele estranho estado de consciência, como alguém que desperta de um pesadelo.

— Você não pode acordar, meu aluno, simplesmente porque não está dormindo — comentou o ancião com o olhar condescendente.

II

— Você sente a presença dela? — perguntou o mestre após alguns momentos de silêncio. Por não obter resposta, ele insistiu na pergunta.

— Dela quem? — finalmente respondeu o aprendiz, displicentemente. O medo que o atormentava era grande demais. Ele ocupava seu cérebro, bloqueando os pensamentos.

— Meu jovem amigo, sua atenção está muito dispersa e assumiu a forma de um sentimento. Esse terror que sente nada mais é do que reflexo da própria ignorância. Recorde-se do nosso propósito e garanto que conseguirá pensar com mais clareza.

De fato, o aprendiz se lembrava de uma moça, filha de um homem poderoso, que chegara quase morta dois dias antes no mosteiro. Seu rosto era verdadeiramente lindo se comparado ao dos monges. Ela fora a primeira mulher que vira desde que fora separado da mãe. Sim, agora ele se lembrava, a meditação visava encontrar uma saída, um modo de ajudá-la, por meio de um dos segredos. Tentou recordar mais detalhes, mas não conseguiu. De fato, era tudo o que sabia. O medo diminuiu um pouco, conforme recordava o pedido de ajuda do mestre para salvar a pobre criatura.

— Então?

— Não sinto a presença dela.

— Eu também não. Isso é inesperado. Afinal, foi tudo tão recente... Acho que precisaremos de ajuda.

— Não entendo. Que lugar é esse?

— Nunca disse a você que esse é um lugar, embora possa ser interpretado assim... — falou o velho. Ficou alguns momentos em silêncio e depois, ignorando a pergunta, disse o seguinte: — Há possibilidades quase infinitas. Vai ser muito mais difícil que encontrar uma agulha no palheiro. Vejamos. Talvez ele possa me ajudar. Mas é lamentável que tenha que recorrer a ele...

— Não respondeu minha pergunta — insistiu o aprendiz. Normalmente, não seria tão ousado a ponto de interpelar o mestre dessa maneira, mas o medo estava ameaçando retornar e sua razão titubeava. Ele precisava saber mais!

— O homem de quem falo é um membro de nossa ordem... ou foi há muito tempo... A escuridão o está incomodando, não? Feche os olhos. Garanto que vai achar mais interessante o que verá em seguida.

O jovem monge obedeceu a seu professor. A despeito do medo, esse era um desfecho natural. Afinal, havia sido ensinado a obedecer desde muito cedo. Era algo que se tornara incrustado na sua maneira de ser. Mas antes tivesse se recusado! Antes nunca houvesse aceitado ajudar a moça! Nenhum ser humano deveria ser obrigado a contemplar o que viu.

III

A planície em chamas estendia-se ao infinito. Era uma visão realmente impressionante. Como estavam sobre uma colina, podiam ver até o horizonte a terra enegrecida, cortada por rios de lava e pontilhada por florestas de fogo. Eram desses incêndios gigantescos que vinha a luz, pois o céu era inteiramente preenchido por nuvens escuras. Contudo, aos olhos do aprendiz, o mais impressionante não foi a paisagem, em si, mas o medo que vinha a ela associado; um medo que não era dele, mas que estava impregnado no próprio ar que respirava.

— Não se preocupe. Essa sensação desagradável vai passar, ou pelo menos, vai se tornar mais suportável. Também me senti assim na primeira vez em que estive aqui. Mesmo grandes conhecedores das artes antigas do controle mental tiveram dificuldade em manter a serenidade nessas circunstâncias.

— Que lugar é esse? — murmurou o aprendiz, quase sem conseguir pronunciar as palavras. Tinha dificuldade em controlar seus pensamentos e suas ações.

— Novamente, você fala em lugar... Não tente entender por enquanto... Percebo que está muito transtornado. Nem será capaz de compreender coisa alguma se não se acalmar. Apenas venha comigo. Acha que consegue?

Ele não respondeu, mas acompanhou o mestre. A obediência ao professor, era o único liame que o ligava a sua antiga vida, evitando que enlouquecesse. Na base da colina, havia um túnel, por onde seguiram. A escuridão era quase completa naquela estranha caverna. Havia, porém, uma providencial luz alaranjada que emergia das profundezas. Sem ela não enxergariam um palmo adiante. De súbito, viram-se numa grande câmara, que parecia interligar uma rede de cavernas. Era como se fosse uma espécie de vila — porque havia pessoas perambulando. Eram seres maltrapilhos, sujos e feridos. A maioria, pelo menos, tinha queimaduras aparentes. Eles não pareceram incomodar-se com a chegada dos forasteiros. Ignoravam aos dois, como se não conseguissem vê-los. O mestre também não parecia importar-se com eles, de sorte que continuou seu caminho, seguido pelo assustado aprendiz, até uma espécie de casa escavada na pedra. Lá um homem meditava em silêncio. Ante a chegada dos forasteiros, porém, ele abriu os olhos de um azul profundo.

IV

— Ah, vejo que meu velho amigo resolveu me visitar. E trouxe um discípulo...

— Lamento perturbar sua meditação — respondeu o mestre, cerimonioso.
O homem abriu um sorriso cínico. Percebia-se que, ao contrário dos demais, não tinha ferimentos aparentes.

— Como vê, tenho tempo de sobra, já que ainda não fui capaz de escapar dessa prisão.

— Prisão?

— Meu jovem, é a sua primeira vez aqui, não é? E seu professor não lhe contou coisa alguma, suponho. Eu fazia a mesma coisa. Senão como conseguir voluntários? Ninguém em sã consciência aceitaria conhecer os segredos... Bem, tenho certeza de que está muito curioso, mas, infelizmente, nossa conversa terá que ser postergada. Advirto que a espera deve ser um pouco longa. Então, recomendo que se sentem no chão, já que não tenho mobília.

O jovem queria dizer alguma coisa, mas seu mestre o dissuadiu com um gesto. Os três sentaram-se no chão de pedra e lá ficaram por um bom tempo sem que nada acontecesse. Aquilo só serviu para fazer aumentar a ansiedade do monge franzino. O medo que respirava no ar não diminuíra. Ao contrário: aumentava de intensidade como se alguma coisa terrível estivesse para acontecer. Agora percebia com clareza que aquele sentimento não era seu. Exalava das outras pessoas, até mesmo do anfitrião, como um aroma característico daquele lugar terrível. Subitamente, o acontecimento por que todos esperavam teve lugar: uma onda de calor intenso invadiu o recinto e toda a caverna. Os monges sentiram sua pele arder, um sentimento que os desnorteou, de sorte que não seriam capazes de estimar o tempo que durou o fenômeno. Quando o monge mais jovem conseguiu recuperar o controle parcial de seus sentidos, apressou-se em olhar seus braços, para ver se estavam machucados.

— Não se preocupe — disse o mestre. — Nós não pertencemos a esse lugar. Aqui somos como fantasmas. Portanto, não fomos feridos. Não posso dizer o mesmo dos outros.

— Não se esqueça de mim, velho amigo — disse o anfitrião. — Consegui repelir a maior parte da energia como sempre. Só tive umas queimaduras muito superficiais. Estarei bem em uns dois dias.

O monge mais jovem aproximou-se da porta para verificar o estado das demais pessoas e viu que estavam no chão, agonizando com queimaduras bem mais graves. Debatiam-se sem cessar, mas, estranhamente, não pareciam estar morrendo. Algumas até já procuravam levantar-se. O medo que preenchia o ar havia diminuído de forma sensível e fora substituído pela agonia dos feridos. Quando o monge retornou ao interior da casa de pedra, tudo estava claro em sua mente. Ele já sabia onde estava.

V

— Então esse lugar é um inferno quente... — comentou o rapaz.

— Há muitas maneiras de explicar uma realidade — respondeu o homem, enquanto verificava seus ferimentos. — Uma aproximação possível dessa circunstância a que estou submetido é essa que você mencionou. Mas lembre-se: está traduzindo um fenômeno que não consegue explicar em termos que é capaz de entender. E, com isso, você distorce a verdade e a simplifica.

— Entretanto, para todos os efeitos — completou o mestre —, você pode ver esse lugar como um dos inumeráveis infernos, desde que tenha em mente que essa é apenas uma parte da verdade, ou uma perspectiva entre muitas.

— Como viu, somos assolados constantemente por ondas de calor, e estranhamente não morremos por causa disso, embora fiquemos muito machucados. Aqui no santuário o calor não chega com toda a intensidade.

— Pode ser ainda pior?

— Muito pior! Na superfície, o corpo seria incendiado, mas mesmo assim não morreria. Entenda: nossos corpos são muito resistentes ao calor... conseguem se recuperar muito rapidamente. No entanto, se uma onda de calor me surpreendesse na superfície ficaria muito debilitado, não conseguiria mais andar nem raciocinar com clareza. Ficaria lá sendo dilacerado pelas chamas até que finalmente fosse consumido por elas. Mas isso demoraria uns mil anos. Como vê, seria uma situação bem pior do que essa que tenho suportado. Muitos dos que estão aqui, já estiveram lá cima e nós os trouxemos para cá.

— Quer dizer que vocês os ajudaram?

— É tão difícil de acreditar? Acha que é impossível encontrar solidariedade e bondade aqui? Infelizmente, as coisas não são tão simples, meu caro.

— Mas o carma os trouxe para cá.

— No meu tempo, a ordem não era budista... Você sabe que não somos realmente adeptos dessa religião. Isso é um modo que a ordem encontrou para passar despercebida entre os budistas, um disfarce... Apesar de tudo, acho que provavelmente deve haver alguma verdade na lei do carma no sentido de que toda ação intencional provoca uma reação idêntica. Entretanto, sinceramente não me lembro de ter causado um sofrimento equivalente a esse que tenho experimentado. Já perdi a conta dos anos que estou aqui e ainda não sei quando ou se poderei ir embora.

Era impressionante o autocontrole que demonstrava aquele homem condenado a tantos suplícios. Como dito, havia medo exalando dele e, em suas palavras, era perceptível uma ponta de amargura. Mas o simples fato de conseguir manter alguma serenidade naquelas circunstâncias era digno de nota.

— Meu caro amigo, já lhe expliquei por que você está preso aqui, apesar de seu poder considerável. Foi o seu carma que criou essa circunstância, sem dúvida. Mas a corrente que o prende a ela é o medo que sente. Você se preocupa com o bem-estar de algo que não é mais do que a associação passageira de muitas partes em eterna transformação, o que você chama de “eu”. Essa confusão é o seu erro fundamental, a fonte dos seus desejos e a causa do medo que o prende a este lugar.

— Poupe-me dessas ladainhas, velho bruxo! Você não é busdista. Por que fala como eles? — trovejou o homem. Ele finalmente se havia irritado. — Ainda terei o prazer de vê-lo neste lugar ou talvez noutro ainda pior, porque sei que o seu carma o prenderá a um desses infernos, mais cedo ou mais tarde, como aconteceu comigo. Esse é um resultado comum entre feiticeiros. É muito fácil fazer seu discurso agora, mas garanto que não conseguirá ser tão indiferente ao próprio sofrimento... nem será capaz de superar a crença na própria existência como uma criatura separada do resto.

— Não disse que você não existe. Apenas afirmei que não é o que pensa ser...

— Já basta! Diga-me logo o que quer.

— Você já sabe o que eu procuro. Já sondou a mente do meu aprendiz. Pensa que não percebi?

— Era isso? Então perdeu seu tempo. Não vou ajudá-lo dessa vez.

— Nesse caso, retaliarei. Quer mesmo correr esse risco?

— Por que não a encontra você mesmo? — retorquiu o homem.

— Não consegui... Seja razoável. É um favor muito pequeno esse que estou lhe pedindo. Você pode perceber essa realidade muito melhor do que eu porque é parte dela.

O homem ficou pensativo por alguns instantes, analisando as ponderações e as ameaças do mestre. Fechou os olhos por alguns momentos, para melhor averiguar as possibilidades. Quando os abriu, espantou o jovem monge com a crueldade de sua expressão.

— Toda vez que você vem aqui fica fazendo esse discurso sobre como posso me libertar — falou o condenado. — Mas nada sabe sobre minha condição e me julga sem conhecer a realidade a que estou submetido. Então, se você concordar em sentir por alguns instantes o terror que experimentamos e não enlouquecer por causa disso, eu o ajudarei.

— Mas o mestre já conhece o medo — falou o aprendiz. — Até eu o conheço! Ele impregna o próprio ar que respiramos!

— Meu pobre tolo, isso não é mais do que um reflexo do que sentimos. Então?Aceita minha proposta?

O mestre não demorou mais do que alguns instantes para responder. Ele realmente não tinha muitas escolhas. A não ser que pretendesse desistir, precisava aceitar a terrível barganha. Os dois uniram suas mentes por um breve momento e, então, o monge idoso caiu no chão convulsionando, para a satisfação do anfitrião, que ria sem parar. Demorou muito tempo até que recobrasse a consciência. Quando despertou estava ainda desnorteado, mas logrou recuperar o controle de sua mente após algumas horas de meditação e esforço.

VI

Desciam rumo a um vale incendiado. A luz era muito intensa naquele lugar, ante as florestas de fogo e os rios de magma. O mestre, porém, os havia afastado um pouco daquela realidade, de sorte que nenhum dos dois conseguia perceber mais do que resquícios do calor intenso que os cercava. Como o elo com aquele estranho mundo era mais tênue, as imagens pareciam menos concretas, tornavam-se fluidas. Tudo era transformado pelo mesma percepção abstrata que domina os sonhos. O monge notou que a matéria ali era uma emanação do carma: meros sentimentos e vontades condensadas, que podiam ou não ser percebidas como coisas concretas.

— Você está quase no estado de sonho e, portanto, experimentando percepções mais superficiais desse lugar, comuns a quase todas as pessoas. Você sabe: quando dormimos, perscrutamos muitos lugares. Tive que tornar nossa ligação com esse plano mais tênue para evitar que nos machucássemos. Mas, cuidado, meu aluno, para não acordar agora, justamente quando estamos tão próximos do nosso objetivo! Preciso de você.

— Ela está perto?

— Não consegue perceber sua presença?

— Não consigo mais diferenciar o que estou vendo de pesadelos ou das lembranças. Tudo flui a minha volta.

— Ah, mas ela está perto. Meu velho amigo falou a verdade.

— Ainda o chama de amigo depois do que ele lhe fez?

— Ele só queria se divertir um pouco às minhas custas e me ensinar uma lição. Ele estava certo: realmente subestimo esse lugar e as correntes que o prendem aqui. Falta-me o dom da Grande Percepção, sem o qual não é possível guiar os segredos. Nunca serei um mestre como os do passado. Mas talvez você ainda possa ser.

— Eu?

— Não se subestime! Se eu tivesse sido trazido aqui quando jovem, teria enlouquecido. Meu mestre nunca permitiu que eu tivesse um contato próximo com essa realidade antes que estivesse preparado. Mas você teve esse contato e continua são. Isso não é pouca coisa!

— Mas, se esse lugar é um inferno quente, ela já está morta. Como então poderemos salvá-la?

— De fato, ela é uma suicida...Mas vida e morte são apenas lugares. São rótulos. Não têm nada de definitivos.

— Não entendo. Como poderemos ludibriar a própria morte?

— Logo compreenderá. Pois esse é um dos segredos de nossa ordem... — respondeu o mestre. O jovem monge não conseguia discernir bem a face de seu professor, ela própria parcialmente consumida pela fluidez que o rodeava. Poderia jurar, porém, que viu desenhar-se nela um sorriso cruel.

VII

— Você é capaz de vencer seu medo — repetia o mestre diversas vezes numa velha memória. Estavam à beira de um despenhadeiro. Era inverno, como denotavam os flocos de neve caindo. O mestre segurava o então jovem discípulo próximo à beirada. — Você está com medo de cair? Perceba o seu medo como ele é, algo primitivo, algo que não é inerentemente seu.

— Não entendo! — gritava o garoto muito assustado.

— Ora, para considerar uma coisa como sua, primeiro você precisa saber quem é. Então me responda: quem é você? Nunca se fez essa pergunta? Deduz que você é alguém, pressupõe sua existência como algo perene... então o que é você? Deve ser capaz de definir o que é essa consciência que persiste através do tempo, que insiste em chamar de “eu”?

— Uma voz dentro da minha cabeça, eu acho — disse ele, ameaçando começar a chorar. Não devia ter mais de doze anos naquela época. O mestre o libertou.

— Você é apenas uma voz na sua cabeça, uma corrente cuja unidade nasce das memórias? Nunca se perguntou se essa voz é realmente sua? Há realmente uma só voz? Então, nesse caso, por que faz coisas nas quais não acredita... coisas contrárias ao seu raciocínio e a sua vontade? Todos nós cometemos atos que consideramos errados ou mesmo odiosos... Como explicar? Eu lhe respondo: porque não existe uma única voz na sua cabeça. Na verdade, existem inúmeras e suas ações são determinadas pela vontade mais forte, a despeito das demais, que ficam protestando... Mas, se existem muitos “eus” no seu cérebro, qual deles é realmente você? Todos e nenhum. Na verdade, esse “eu” não existe da forma como você o concebe. Não é nem algo único nem é perene através do tempo. Compreender esse fato é dar o primeiro passo para a verdadeira liberdade. Você entende?

— Acho que sim — balbuciou o menino, finalmente mais calmo, uma vez que o mestre o havia soltado.

— Então pule! — falou o velho, bruscamente, ameaçando empurrá-lo. — Liberte-se do medo.

— Não! — gritou o menino, que se afastou correndo.

Essa memória surgiu e desapareceu da mente do monge franzino num átimo. Agora estava novamente diante da paisagem em chamas. O mestre tinha algo em seus braços, algo que lembrava remotamente um corpo humano. O objeto brilhava intensamente, ante a ação do calor circundante. Ele recitava uma estranha ladainha, numa língua há muito esquecida. Entretanto, ao ver que o discípulo o observava ele parou.

— Ah, sei o que você estava pensando... Você finalmente lembrou. Eu o havia induzido a esquecer.

— O senhor tentou me matar...

— Novamente você fala essas bobagens. Não consegue compreender agora, como não entendia antes e, por isso, agarra-se a tais rótulos. Estava tentando libertá-lo... Criar um mestre dotado da Grande Percepção que pudesse lidar com os segredos em sua plenitude. É o mesmo que estou fazendo agora.

— O quê? — exclamou o discípulo consternado. Havia algo em suas mãos, um brilho estranho. Não conseguia pensar com clareza. Sentia o vento quente ferver até o tutano dos ossos, mas não sabia se aquilo era dor ou apenas uma idéia. Respirou fundo, mas tudo que conseguiu inspirar foi medo. Que confusão era aquela? Precisava de alguma explicação, mas seu mestre não lhe dizia nada. Apenas entoava palavras estranhas, um feitiço funesto. Subitamente, foi jogado ao chão e começou a queimar, seu corpo inteiramente envolvido por chamas amarelas. Nesse meio tempo, a pessoa que estava no colo do velho recuperou suas feições humanas, que eram realmente de uma beleza incomum. Negros e lisos cabelos em um rosto de porcelana.

— Onde estou? — exclamou ela. — Onde estou? — repetiu, como uma voz suave e assustada.

— Feche os olhos. A visão desse lugar não é para uma mente delicada como a sua — respondeu o mestre.

— Eu só me lembro... meu pai queria me forçar a casar... um frasco de veneno.

— Não pense nisso agora. Feche os olhos, menina. Logo, tudo estará bem.

A moça, de fato, adormeceu. O velho pôs-se de pé e fez menção de ir embora. Mas deteve-se ante a visão aterradora do corpo dilacerado de seu antigo aluno, que, obviamente, era incapaz de ouvir suas explicações, consumido como estava por uma agonia indescritível que devorava o pensamento. Mesmo assim, não conseguiu deixar de lhe dar essa última lição:

— Viu como ludibriamos a morte? Precisamos fazer uma troca... Você por ela, é claro. Essa foi a troca. É uma tarefa muito delicada trazer uma pessoa dos mortos. Felizmente ela morreu por veneno há poucas horas... de sorte que seu corpo não foi muito danificado. Estava ainda viva quando chegou ao mosteiro... Entendeu por que eu precisava da sua ajuda? Mas não pense que sou cruel, meu aluno. Fiz isso não só porque o pai dela é muito poderoso e pode auxiliar nossa ordem mas também pensando em você. É a sua oportunidade de atingir a Grande Percepção, de conquistar um poder que ninguém em muitos séculos foi capaz de alcançar! Tudo o que tem que fazer é controlar seu medo, é abrir mão da preocupação instintiva que tem consigo mesmo... Se não se preocupar com você, não sentirá mais medo nem dor... e estará livre. Será o maior mestre que nossa ordem já teve... Gostaria que me entendesse...

O velho queria continuar seu discurso, mas não havia tempo a perder. Desapareceu subitamente, retornando ao mundo dos vivos com sua protegida.

Comentários

Unknown disse…
Olá Jorge,
Bem interessante a idéia de postar contos que se distanciem do tema central de teus livros. Isso fará com que teus leitores conheçam outras facetas da tua escrita. também gostei muito do espaço do blog... Abraços!
Jorge disse…
Olá!

Muito obrigado pelo comentário!! Depois que postar este primeiro conto, ainda pretendo postar outros dois, cada um com um tema diferente. A idéia era esta mesmo que você mencionou: trazer variedade ao site.

Abraço!
Roberta de Souza disse…
Olá JOrge! Imagina! Foi ótimo ler seu livro! Pena que a editora, quando me enviou, já enviou o livro tres e depois não enviou mais nenhum...
Não deu nem para fazer uma grande resenha, sorteio ou entrevista...

Abs,
Beta

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