Sobre deuses e Platão


Um leitor (e escritor), muito generoso em seus elogios, me perguntou o seguinte:

Eu optei por escrever, além do prazer, também por ser uma oportunidade de engrandecer as pessoas. Sabe, uma oportunidade de agregar valor. De ensinar, transmitir um mínimo de sabedoria de forma indolor e inadvertida! Nos teus dois livros fiquei fascinado com a descrição que fazes dos deuses, em especial no segundo livro. Me parece que tens um domínio de sabedorias maiores, o que de se esperar por parte de um diplomata certo? Mas escrevestes os livros antes!Então me pergunto de onde tirastes esta perspectiva impar, e ao meu ver evoluída e transcendental, de deidades nem más ou boas? Quero dizer, na grande zona cinzenta do todo? Inclusive, citastes a idéia de Platão do uno, mas me parece que este conhecimento ecoa em ti... Te pergunto isso porque me sinto desta forma, como se uma percepção mais apurada das tramas do universo fizesse parte de mim, e me senti identificado com sua forma de ver, sutil e imperceptível talvez para o leitor casual!


Minha resposta:

Muito interessante que você escreva Fantasia e Ficção Científica, afinal são gêneros irmãos. Gosto muito de ficção científica também. A única coisa que não me atrai no gênero é o policiamento da FC hard: a obsessão que às vezes existe sobre se o livro é baseado em boa ciência ou não. Essa está longe de ser minha preocupação central. Como leitor, tenho menos preocupação com a versossimilhança do que com a beleza da história. Gosto de livros bonitos - de histórias e de personagens interessantes - e estou disposto a perdoar pequenas incoerências. A verossimilhança, por outro lado, não é suficiente para salvar um livro ruim.

Acho que foi Dostoievski quem disse que às vezes é possível apreender coisas pela literatura que o discurso racional não é capaz de transmitir. A boa arte, me parece, pode sim atingir um conhecimento que a razão ou a filosofia não são capazes de alcançar porque, na arte, é possível conciliar os paradoxos. Não tinha, é claro, a pretensão de atingir essas alturas nem de transmitir conhecimento algum. O que procurei fazer foi apenas evitar o proselitismo, simplesmente porque as obras que mais me irritam são justamente aquelas em que o escritor deseja me convencer de alguma coisa ou me dar alguma lição. Eu prefiro apresentar ambos os lados de uma controvérsia com o mesmo entusiasmo e o leitor, se quiser, que tire suas próprias conclusões. Daí porque procurei criar personagens que não são brancos nem pretos, mas cinzas. Não entendo por que, em Fantasia, o maniqueísmo ainda impera. Meus vilões e o meus heróis têm virtudes e defeitos. O escritor deve gostar tanto dos seus antagonistas quanto dos protagonistas. O escritor que julga seus personagens (como um deus faria) não está agindo direito. O melhor é perdoar os erros deles, reconhecer suas virtudes e permitir que ajam de acordo com sua própria natureza. Foi isso que procurei fazer tanto com os mortais quanto com os deuses.

Particularmente em relação aos deuses, minha inspiração principal foi o modelo grego. Nunca vou esquecer da lição da Ilíada: de como os deuses participaram da guerra de Tróia, de como tinham interesses, ódios, vaidades; e de como eram virtuosos apesar dos vícios. Sobretudo, Homero me ensinou que mesmo o deus mais poderoso pode ser ludibriado por forças menores, mas astutas. Você foi muito perspicaz ao mencionar Platão. De fato, a Guerra das Sombras, já pelo título, remete à Platão. É o mito da caverna, que está na obra "A República". Realmente, a Terra das Sombras é o mundo das sombras de Platão - o das pessoas que não vêem as coisas como são, de fato, mas apenas suas sombras refletidas nas paredes da caverna. Não é por acaso que, Rairom, ao atingir a primeira iniciação, deixa a caverna. Ele é o homem que deixou a caverna na história de Platão, o homem que viu as coisas como são realmente - e não apenas as sombras - e vem instruir os demais. Outra referência é a idéia do véu de Maia, da filosofia indu, tão explorada no filme Matrix. A ligação que Rairom vê entre todas coisas é a mesma visão de Arjuna ao encarar a face verdadeira de Krishna no Bagavhad Gita. Quando cai o véu, só resta Deus.

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