Impressões do vampiro

“O mundo é um inferno, povoado por espíritos atormentados e demônios”
Arthur Schopenhauer

Um pico na veia, um tapa no rosto, um soco no estômago. Um grande deserto, estéril e fumegante, vasto e terrível, povoado por seres atormentados, alguns, outros sórdidos e cruéis, seres sem escrúpulos, escravizados por suas próprias obsessões. Uma terra arrasada, terra de ninguém, onde os fracos servem como presa e a inocência é devorada. Um lugar onde a mentira toma ares de verdade e a injustiça recebe o nome de justiça. Siga o conselho de Dante. Deixe para trás toda a esperança e seja bem-vindo... ao inferno? Não! Mil vezes não! Bem-vindo ao mundo de Dalton Trevisan.


Nelsinho é um escravo de seus instintos. Ele é um vampiro. Não chupa sangue, mas devora almas. Sua conduta é perfeitamente aceitável, afinal, os outros tentam fazer o mesmo com ele. A mentira é parte importante de sua vida e serva de suas obsessões. Por seu caráter é recompensado, embora não esteja livre da dor. O sofrimento vem não só da escravidão, da ânsia pela próxima vítima, mas também do fato de ele próprio ser vítima de suas presas. “Sou inocente, meu pai”, reclama Nelsinho na última linha do último conto. De fato, ele é. Age apenas de acordo com sua natureza e de acordo com o que o mundo exige dele. É trágico e cômico (uma comédia sinistra). Mas nada o redime, pois não há lugar para misericórdia ou esperança. Resta ao vampiro cumprir o seu papel até o fim.

Um personagem sem nome ouve vozes que o impelem a matar seu vizinho e a família dele, acaba sucumbindo a essas vontades e mata a todos (vizinho, mulher e duas crianças), sem qualquer piedade ou remorso. Um outro, também sem remorso algum, expulsa de casa o seu gato já velho, que ama o dono, mas perdeu o amor da família. Um terceiro anônimo escreve uma carta desesperada para a namorada, que não o quer mais, onde se misturam a ternura e um ódio cada vez mais intenso nascido do amor-próprio ferido, da rejeição. Enquanto isso, um pastor evangélico explora a fé sincera dos ignorantes, incentivando-os a pagar seus dízimos, prometendo, em troca, todos os milagres. Um certo João definha em sua cadeira (o braço imobilizado em virtude de um derrame), enquanto é assaltado pela forte repulsa que sente por sua mulher. Outro João torna-se viúvo, dá os sete filhos, casa-se de novo, espanca a nova mulher como fazia com a antiga, embebeda-se e faz mais filhos. Onde está Deus em tudo isso? Dalton nos responde: ele é quem chancela as crueldades e as desgraças, quem permite, insensível, todo o sofrimento. “Deus, ó grande deflorador das criancinhas”, conclui o autor.

O desconforto criado por esse mundo é por demais evidente. A pergunta que se impõe é igualmente desconfortável: é esse mesmo o nosso mundo? Alguns diriam que não, que no máximo trata-se de uma parcela pequena e depravada da realidade. A esses otimistas talvez Dalton respondesse que se iludem, pois vêem o mundo através do véu da hipocrisia. É contra esse conveniente véu, mais do que contra o mal que ele oculta, que o autor se insurge. Como Nelson Rodrigues, ele despe a realidade desse traje asqueroso de mentiras e mostra a vida como ela é. Como Nelson, Dalton parece ser um moralista. No espírito do texto (embora nunca se encontre nada expressamente dito nesse sentido), é perceptível uma condenação à hipocrisia, um desejo não manifesto de que os personagens sejam verdadeiros para com o mundo e para consigo mesmos. Nesse desejo — oblíquo, rarefeito, mas onipresente — talvez se encontre uma faísca de esperança, sempre pronta a inflamar-se. É o oásis que nasce no deserto.

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