Lidando com o lugar-comum

Já virou lugar-comum escrever sobre lugar-comum. Não é difícil encontrar na imprensa artigos denunciando esse terrível crime que é o uso dos clichês. Alguns são bem humorados, outros são mais raivosos e todos são enfáticos ao exigir originalidade de quem escreve. O problema é que alguns desses artigos não esclarecem onde está o crime. Despoticamente, discriminam algumas expressões que consideram lugares-comuns e proíbem a sua utilização. Isso é um erro, simplesmente porque o chavão, às vezes, pode ser utilizado e, em certas circunstâncias, é até mesmo inevitável.

Segundo o dicionário Aurélio, lugar-comum é “uma palavra a que se recorre para maior expressividade, mas que já não tem esse efeito em virtude do seu abuso”. O chavão é, assim, uma idéia, ou uma expressão muitas vezes utilizada. Um exemplo bastante óbvio é a rima que existe entre “amor” e “dor”, o lugar-comum por excelência da poesia em língua portuguesa. Ora, não há nada de errado com essa rima, aliás é uma rima muito boa que sobrepõe dois sentimentos que, apesar de aparentemente opostos, invariavelmente andam juntos. Por isso mesmo foi muito utilizada pelos poetas. O problema é que a expressão perdeu sua força pelo excesso de uso. É recomendável, portanto, que o poeta busque novas maneiras de expressar a mesma comparação.

Em textos argumentativos, o lugar-comum não está apenas nas palavras, mas na própria idéia. Assim, dizer que as crianças são puras, que o amor vence todas as barreiras, que o Brasil é o país do futuro, que a geração dos anos 90 é formada por pessoas alienadas e egocêntricas, que o brasileiro não gosta de ler e é preguiçoso, que os Estados Unidos são um império opressor, que o Brasil é um país de católicos, tudo isso é fazer uso de chavões. Então essas afirmações não podem mais ser feitas? É claro podem. Tanto isso é verdade que já foram feitas muitas vezes. No texto argumentativo, o risco não está na utilização do clichê, em si. Está sim na aceitação acrítica e por vezes ingênua do chavão, simplesmente pelo fato de ele ser muito repetido. Assim, não há problema algum em afirmar que o Brasil é o país do futuro desde que se sustente essa assertiva com argumentos convincentes (tais como a abundância de recursos naturais, a diversidade biológica, o seu peso demográfico considerável, entre outros).

Já no texto ficcional, o lugar-comum é ainda mais necessário. Em primeiro lugar isso é verdade porque as histórias humanas muitas vezes se aproximam. O sentimentos humanos não variaram muito durante a história, como a própria natureza e desejos dos homens são razoavelmente estáticos. Naturalmente, portanto, os personagens tenderão a ter anseios mais ou menos semelhantes e suas histórias não estarão tão distantes assim. Logo, o tema de Romeu e Julieta de Shakespeare poderá ser encontrado em mitos gregos muito antigos ou em livros atuais. É claro que sempre haverá diferenças, mas as semelhanças também serão numerosas. Em segundo lugar, o chavão pode ser um instrumento poderoso na narrativa. Invocá-lo é trazer à tona as memórias do leitor. Se, num livro de suspense, a escada ranger, o nível de tensão imediatamente aumenta, porque o leitor antecipa o que se seguirá.

Portanto, basta dessa demonização dos clichês. Eles são nefastos apenas se mal utilizados. A originalidade é sem dúvida uma qualidade, mas querer ser sempre original pode se tornar um defeito. O caminho do meio, como dizia Aristóteles, é o ideal (eis aí mais um clichê).

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