Para que servem os livros de Fantasia?

Certa vez, um taciturno fidalgo de nome Alonso Quijano enlouqueceu (supostamente, por causa de sua paixão por livros de cavalaria). Resolveu ele próprio tornar-se cavaleiro andante e partiu para realizar grandes feitos. Nascia Dom Quixote de la Mancha, um dos personagens mais influentes da história da literatura. Dostoievski chegou a descrever o livro de Cervantes como "a suprema realização da inteligência humana".

Para quem gosta de Fantasia, a primeira coisa que salta aos olhos no Quixote é o fato de que ele também é um fã do gênero. Porque os livros de cavalaria nada mais são do que obras de Fantasy, onde guerreiros corajosos enfrentam magos maléficos e matam dragões ou gigantes para salvar as princesas. Por isso, a crítica que o livro apresenta por meio de seu perturbado protagonista chamou tanto a minha atenção. É evidente desde o início: a alienação de Dom Quixote está diretamente relacionada ao escapismo que impregna seus livros preferidos.
A crítica de Cervantes é até mais atual hoje do que quatrocentos anos atrás quando foi formulada. A progressiva desmistificação do mundo contribuiu para afastar ainda mais os livros de Fantasy da realidade. Por mais que se possa traçar paralelos entre, por exemplo, a Terra Média de Tolkien e a Europa da Segunda Guerra Mundial, as diferenças são sempre maiores que as semelhanças. Então para que servem esses livros? Não seria mais pertinente escrever sobre nossa própria época e, assim, abordar mais diretamente os problemas que enfrentamos?

É claro que não há nada de errado em escrever sobre o nosso cotidiano. Restringir, porém, os limites da literatura à vida comum seria empobrecedor. O mérito da Fantasia (e, em certa medida, da Ficção Científica) está em desafiar limites, em sugerir novos pontos de vista e possibilidades. Destruir as amarras do mundo - essa é a sua função. Ao conceber universos menos concretos, em que sonho e realidade se misturam, a Fantasia pode produzir uma beleza impossível de encontrar nas coisas comuns.

O próprio Quixote é um exemplo disso. Segundo o crítico literário Harold Bloom, Dom Quixote "não é nem tolo nem louco, e sua visão é dupla: ele vê o que vemos mas, também, algo mais, uma possibilidade de glória da qual deseja se apropriar, ou, pelo menos, partilhar". É isso que, segundo Bloom, torna o personagem único e a obra de Cervantes imortal. E é isso que redime os livros do gênero e justifica as estranhas e maravilhosas jornadas que as obras de Fantasy nos convidam a empreender.

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