Réquiem para o fênix

A era da imagem em movimento iniciou-se em luz e sombra, na sucessão silenciosa que assombrava as platéias no início do século XX. A cinematografia nascente ainda necessitava da palavra escrita, mas logo abriria mão dela quase que por completo. O som era um coadjuvante bem mais adequado à natureza aceleradamente mutante da imagem em movimento, à sua grandeza e resplendor quase hipnótico. A descrição era ineficaz. Nem mil palavras substituiriam a força sedutora de uma única imagem. Os livros, como a lamparina, tornavam-se cada vez mais obsoletos. Guardados em estantes, empoeirados e sozinhos, causavam uma estranheza cada vez maior no homem entretido por imagens. Restava apenas um respeito peculiar àquelas relíquias de tempos primitivos e exóticos.

Mas que seria da sociedade sem o velho ancião? Ele é como a roda e o fogo. É uma invenção primorosa, sem a qual muitas outras não teriam acontecido. Que outro objeto seria capaz de, nos tempos idos, ludibriar a própria morte impedindo que o pensamento perecesse com a mente que o criou? Que outro artefato conseguiria explicar a realidade concreta e também abstraí-la? Que outro objeto, por fim, seria capaz de anular simultaneamente o espaço e o tempo, criando um monólogo (que é quase diálogo) entre duas mentes separadas não importa se por metros ou oceanos, se por dias ou milênios? O livro foi e é capaz. E se existe hoje uma civilização que, apesar de suas muitas mazelas, logrou acumular conhecimento, que conseguiu criar e preservar uma cultura, muito se deve aos livros.

Por mais poderosa que seja, a imagem é incapaz de desempenhar adequadamente essas funções. Pobre imagem, de fôlego curto, toda sua força concentra-se em explicar as aparências, em explicitar aquilo que tem forma e cor — e nisso ela é insuperável. Tem grande dificuldade, porém, em mergulhar nas profundezas, o âmago das coisas lhe está freqüentemente ocultado. E se as palavras faladas podem, em parte, remediar essa deficiência, nunca o farão totalmente, pois, para que isso fosse possível, teriam que prevalecer sobre as imagens, tomando de assalto seu reinado. O homem entretido por imagens está, desta forma, muitas vezes condenado à superficialidade e, portanto, à incompreensão. Suas idéias tenderão ao lugar-comum, seus valores, ao vulgar maniqueísmo.

Essas deficiências, contudo, são facilmente ocultadas, ante o poder sedutor das imagens, com o qual as palavras, faladas ou escritas, não conseguem rivalizar. Os livros não se oferecem como as imagens, não se impõem como elas. Eles são uma descoberta, lenta e gradual. A leitura é um hábito, mas também um aprendizado, que requer alguma persistência e dedicação. Requer também interpretação, imaginação e reflexão, o que implica necessariamente um certo grau de esforço intelectual. E ainda que as recompensas sejam consideráveis, elas não se revelam no primeiro instante, o que leva o homem entretido por imagens a freqüentemente concluir que tais compensações inexistem. Continuam, assim, a cantar (com palavras e atos) o estridente réquiem que fala do arcaísmo dos livros, um canto fúnebre recheado de equívocos.

Ora, se as funções do livro não são suficientemente satisfeitas pela imagem, é natural e necessário que ele ressurja sob velhas, ou novas roupagens. O livro é como aquele pássaro mitológico que é capaz de renascer de suas próprias cinzas. Esse renascimento, porém, depende da conscientização das pessoas para sua importância, o que não significa negar a relevância da imagem. Se a imagem não é capaz de cumprir as funções do livro, tampouco o livro pode substituí-la. É preciso conjugar esses dois aspectos, combiná-los sempre que possível, reconhecendo a relevância de ambos.

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